segunda-feira, 31 de outubro de 2011

À Ela

A DANÇA
Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo directamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Pablo Neruda

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Palavre(rr)ado

As palavras vêm e(m) vão,
quando querem, somem.
Se soltam,sem amarras.
P-r-e-n-d-e-m-se, "amarr-ao-se".

Dia, noite. Adentro.

Aquela casa destoava das demais daquele bairro; primeiro porque o corpo da casa principal não ocupava todo o terreno, mas apenas o fundo. Segundo, porque era alta e possuía janelões frontais coloniais, com ares rupestres, azuis e com detalhes em branco. A cor predominante da fachada era o vermelhidão. Não era uma casa grande, mas era confortável, com luz e ventilação naturais.

Ali se viam cortinas alvoroçadas pelo vento que passava casualmente e se notava um rapaz, digitando qualquer coisa em seu minicomputador.

Engraçado perceber que o pouco barulho produzido naquela tarde indecisa de terça-feira, inquietava-o. Aliás, assim como qualquer outro barulho.

Jovem de altura mediana, nem gordo, nem magro. Nem bonito, nem feio. Atento à tela, por vezes, deixava sua cadeira para observar o pequeno quintal de árvores temporãs, tal como ele.

O olhar descuidado não percebia o que se passava ao redor, concentrado que estava em uma frase de Machado de Assis, extraída do conto “Um apólogo”:

“ - Também eu tenho servido de agulha para muita linha ordinária”.

A tarde cumpriu seu destino e se foi. A noite veio, trazendo consigo a escuridão, o vento frio e ares mais mundanos e complexos. As janelas se fecharam, as cortinas deixaram de farfalhar. As árvores verdes se enegreceram e houve luz na casa. Um mundo novo, tenso, se seguiu.

O alinhamento da órbita das estrelas foi difícil, mas se quiser navegar na amplidão, tem que passar o Bojador, além da dor.

No dia seguinte, descansou. Vendo o acontecido, viu que fora bom.

sábado, 21 de maio de 2011

O deserto dá vida ou apontamentos de teologia e sociologia

Por estes dias, ouvi uma pregação do pastor e missionário angolano Elias Binja, em um seminário organizado pelo grupo de jovens da IEAD no Jardim da Conquista, na Zona Leste de São Paulo.

Nesta pregação, ele utilizava como base o texto do livro do evangelho de LUCAS 3.2:

“Sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio no deserto a palavra de Deus a João, filho de Zacarias.” (grifo meu, para reforçar o local originador do agir divino).


Inicialmente, o pregador fez considerações acerca da ilegitimidade de Anás e Caifás como sacerdotes supremos do povo judeu, já que a linhagem familial sacerdotal recairia exclusivamente sobre Zacarias e seu filho, João Batista e, portanto, os primeiros teriam usurpado a liderança da responsabilidade litúrgica.

Mas o que mais me chamou a atenção na pregação diz respeito à comparação feita pelo pregador da vida no deserto e da vida na cidade; a contraposição dos estilos de vida: cidade x deserto.

Assim, a cidade representaria a busca pelo lucro, os afazeres cotidianos, a batalha pela sobrevivência, a grandiloqüência das obras humanas, o egoísmo, o self made man, a ausência de solidariedade e a ausência de Deus. Enfim, o homo economicus.

Por sua vez, o deserto representaria a busca pelo autoconhecimento, a solidão, a pequenez humana diante da grandiosidade da obra divina e a necessidade de Deus e do outro.

Esta contraposição de estilos de vida me lembrou do texto de “AS GRANDES CIDADES E A VIDA DO ESPÍRITO” do sociólogo Georg Simmel, cuja temática também é comparativa da vida citadina e da vida no campo.

Neste estudo, o autor analisa o individuo que vive nas grandes cidades em contraposição ao homem do campo, colocando como força motriz das relações citadinas a objetividade monetária do capitalismo.

O fundamento caracterizador da vida na cidade é de natureza psicológica e depois econômica, com a intensificação da vida nervosa: nós, seres humanos possuímos a característica de distinguir as coisas por meio das impressões, e, com o aumento da velocidade e da variância de possibilidades econômicas, pessoais, sociais e profissionais na vida urbana, o homem é, por assim dizer, chamado internamente a opinar sobre as mais variadas impressões colocadas perante ele a todo instante; em outras palavras, é maior a capacidade de processamento da realidade - através de impressões e distinções - do homem urbano, quando comparada ao homem do campo.

Esta chamada interna dá o caráter anímico - que vem da alma - e intelectualista da vida moderna em detrimento à vida rural, cujo “chamado interno” é mais uniforme e lento, além de ter a vida baseada nos sentimentos.

Desta feita, nos casos de mudanças de ambientes, o habitante do campo necessita buscar nos seus sentimentos a raiz para o entendimento da situação. Por sua vez, o habitante da cidade, por estar habituado a constantes alterações, já teria um “órgão protetor” contra o desenraizamento e as reações frente às alterações seriam menos sensitivas no homem urbano que no homem camponês.

E a razão de ser deste gesto protetivo do homem da cidade está na economia e nas trocas monetárias: a objetividade destas atividades não cede espaço a reações fundadas no ânimo ou nos sentimentos: o capitalismo é objetivo (compra, venda, troca, empréstimo, aluguel, alienação).

No campo da psicologia econômica, o autor cita que, no campo, fornecedor e freguês se conhecem mutuamente, na medida em que este encomenda produtos àquele, conquanto na cidade o fornecedor produz para um número indiscriminado de consumidores, com os quais nunca se encontrará. Sobra então, apenas o interesse econômico objetivo de todas as partes.

O homem da cidade é, antes de tudo, um homem contábil, o homo economicus. E, todos os demais sentimentos do indivíduo - traços essenciais individuais e seus impulsos irracionais - precisariam ser amenizados para que a pontualidade, impessoalidade, contabilidade e a exatidão da vida coletiva na cidade se reflitam no interior de cada habitante.

A característica mais clara do comportamento do homem da cidade está no seu comportamento blasé, ou seja, de reserva ou quase aversão a qualquer contato social e de reação contrária a quaisquer estímulos. O blasé é indiferente à distinção das coisas, não porque estas coisas sejam despercebidas, mas porque são nulas: o dinheiro, denominador comum das relações humanas, elimina as pluralidades e diferenças.

Por esta razão, mal conhecemos nossos vizinhos e colegas de estudo ou de trabalho.

As formações sociais mais básicas se iniciam com os “cercadinhos” - círculos pequenos com limitações de contato externo para própria autoconservação - dos quais os indivíduos não podem ultrapassar, mas nos quais podem exercitam limitadamente suas individualidades. Como exemplo, o autor cita os partidos políticos e associações religiosas.

Quanto mais estes grupos crescem, mais a unidade interior se esvai e mais os indivíduos realizam suas potencialidades.

Assim, as indiferenças mútuas e a reserva entre os indivíduos dos círculos maiores, e a cidade cosmopolita é exemplo de formação social complexa, fazem do homem da cidade mais independente do que o homem do campo, e também, mais solitário; ao não interagir com os demais, o indivíduo demonstra que seu modo de vida não é imposto por outros. Reforça sua independência e sua solidão.

Ademais, com a crescente divisão do trabalho e a possibilidade de se criar necessidades lucrativas, o homem busca cada vez mais a especialização, a qual lhe permitiria auferir ganhos maiores; esta especialização se traduz em inovações, instituições, conhecimento, refinamento técnico e delimitação de novas fronteiras científicas, mas também traz consigo egoísmos, esquisitices, extravagâncias, caprichos, preciosismos.

O espírito objetivo da cidade se contrapõe ao espírito subjetivo do campo. O homem da cidade ultrapassa os limites da ciência, do bem-estar individual e do conhecimento, se afastando da espiritualidade, da delicadeza e do idealismo. Segundo o autor, acerca do homem da cidade:

“Ele foi rebaixado (…) à um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que gradualmente lhe subtraiu todos os progressos, espiritualidades e valores e os transladou da forma subjetiva à forma de vida puramente objetiva, talvez de modo menos consciente do que na prática e nos obscuros sentimentos que dela se originam.”


Argumenta o sociólogo que, desta situação, advieram duas correntes filosóficas: uma nietzschiana, na qual o resgate da cultura individual deve prevalecer sobre o que é atribuível a todos, ou seja, as diferenciações e peculiaridades individuais não podem ser diminuídas em face do coletivo ou de uma determinada objetividade coletiva, e, outra socialista, no qual os interesses individuais deveriam coexistir de forma harmoniosa num nível baixo de concorrência entre os indivíduos.

Ambas as posturas, segundo o sociólogo, denotariam a “resistência do sujeito a ser nivelado e consumido em um mecanismo tecno-social.”


Por fim, neste arrazoado de sociologia da religião, sugiro uma terceira corrente, humanista e teológica: que tal o deserto de Deus - a despeito dos diversos nomes que Ele possui nas mais diversas sociedades - para mostrar-nos nossas limitações e indicar-nos uma nova divindade e humanidade interior, cuja alteridade permita dialogar com o outro?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Racismo e etnocentrismo

Abaixo, dois vídeos que tratam do racismo e do perigo do etnocentrismo.

Não se iludam: nem o fascismo morreu, nem tampouco as idéias de superioridade racial, étnica ou de classe social.

Só pra citar alguns casos: expulsão de ciganos búlgaros e romenos pelo governo francês (Sarkozy); restrição à direitos de imigrantes nos EUA; dificuldades na concessão de visto à imigrantes latinos, africanos e asiáticos para os países centrais (EUA, França, Inglaterra, Alemanha); movimentos discriminatórios contra migrantes em geral, e nordestinos em particular, em algumas cidades brasileiras; proibição do véu/burca na França; e por aí vai.



quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Diálogos

"Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa - assim rosa-amor-espinhos-saudade."

Guimarães Rosa: Primeiras Estórias, "A partida do audaz navegante".

domingo, 31 de outubro de 2010

Nana Caymmi - Rio Sonata

Enfim, consegui arrumar um tempinho para ir à Mostra Internacional de Cinema. E não poderia ter sido escolha mais feliz.

O filme mostra trechos de músicas, shows e entrevistas de Nana entremeadas com imagens do Rio de Janeiro, ora idílico, ora popular.

Nana Caymmi é para os humilhados, ofendidos e atormentados pelo amor, pela paixão, pela saudade, pela angústia.

"Eu quero amar demais, sem poupar coração, pois pra mim o amor que apraz é uma louca paixão. O amor só satisfaz além da razão".

"Só louco amou como eu amei".

"Respondo que ele [o tempo] aprisiona, eu liberto. Que ele adormece as paixões e eu desperto".

"Sorri; quando tudo terminar, quando nada mais restar do seu sonho encantador".

Tudo isto na voz de Nana.

Tentei o "boys don't cry"; só durou poucos minutos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Entre canções e sustentabilidade - SWU

Pois bem, não fui ao SWU por "n" motivos, principalmente porque o tema "sustentabilidade" e suas variantes não me interessa; o problema é mais embaixo e isto é uma outra história.

Enfim, vamos ao que interessa: segue o link de texto brilhante do Pedro Alexandre Sanches (que manja tudo e mais um pouco de MPB) sobre o festival.

http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2010/10/sem-lenco-sem-documento-ou-vida-nao-se.html

domingo, 8 de agosto de 2010

Janelas

Na estrada da Divisa recolheu os destroços de Além do Mar.
Naquela estrada, cuja ida se aproximava de Jesus do Céu e cuja vinda se achegava à Nós do Morro, fez a felicidade.
Não que a Felicidade se construa, assim, como prédio, ainda mais vindo de destroços. Mesmo porque ela não tem a intenção de chegar ao céu, só mesmo de passear em algumas mentes ansiosas. Naquele momento, ela preferiu fincar bases no telhado da casa d’Ele, bem perto de onde Ele recolhia as sobras de uma briga qualquer; e como estava cansada de perambular por aí, por ali, por cá e nada receber em troca, ainda que apenas oferecesse momentos fugidios, decidiu ficar lá mesmo.
E como falei de destroços e de brigas, cumpre saber o que se sucedera naquelas margens.
Na realidade, somente dois trens desembestados, em tamanho inversamente proporcional às idéias, resolvendo antigas querelas patrimoniais; no final, nada com ninguém, apenas com Ele o objeto da discussão: algumas ferramentas para arar a terra e uma mão de sementes de maçã-real, cuja doçura, segundo especialistas, é superior à maçã-imperial e à grande-maçã, cultivadas que são lá no estrangeiro. Coisa rara, portanto.
Mas como os dois destrambelhados não se importaram com as sementes caídas na grama, Ele achou por bem pegá-las, lavá-las e plantá-las em seu terreno, junto à beira do lago.
Seu terreno era acidentado, caído para o lago Lorraine, curvilíneo; no plano, na beira da estrada, montara uma ampla casa-galpão de alvenaria, sem muitas paredes e cujo pé-direito, “Jesuis Cristinho Mãe de Deus!” diziam os visitantes mais afoitos ao notá-lo, quase tocava nuvens mais desatentas, largas e soltas ao léu. Tudo muito arborizado, ventilado.
Nas noites outonais Ele saía ao relento, à varanda, à rua, à vida. A brisa que corria pela casa e saía pela janela do quarto trazia o hálito da noite e preparava a manhã seguinte, perfumando os corredores, os corpos, as almas.
Noutra manhã, era a canção que circulava pelos corredores, unindo-se à brisa noturna, insuflando lirismo nas veias d’Ele; a cavalgada das Valquírias, sem poupar corações, parou bruscamente na sala ao ouvir o som de uma voz singular declarando que naquele lugar as estrelas desenhavam o chão no qual pisava, distraída, uma jovem. E o desenho indicava formas geométricas salpicadas de cores primárias, vivas, únicas, tal qual mosaico. E a jovem revelava tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que havia de ser.
A jovem entrou pela porta frontal em direção ao sofá; vestia uma camiseta simples e uma calcinha branca; sem sutiãs, realçava seus pequenos seios no corpo leve, magro, alto, esguio, na pele escura. Seus seios, maçãs suculentas, saborosos, como líquido agridoce, palpáveis; as mãos trêmulas, nervosas, rápidas, indecisas, tocando-os, apertando-os; deslizando ao colo, contornando os quadris. Aproximando, corpo-a-corpo, no parapeito, sem parar os lábios ao redor, em tudo. Os dedos nos pêlos do entreaberto já emotivo, a bocânus. Em pé, sentados, deitados, em ângulos; engole em goles de suor. Tensão. Tem são?

Na loucura, a mando da paixão,
amando, sem senhor, sem patrão,
sem razão.
Sim senhor, escravo;
escrevo o que dá na telha.
E o que dá no telhado é maçã-real.
Jorram maçãs e peitos e mãos e palavras.
Liquidifico.
Líquido, flui.
Liquefaço.
Li, que, fazemos.


Pela janela da sala avistei a cena e notei; estou só, e isto é tudo. Não há nada de novo debaixo do sol, nem tampouco acima da terra. O céu permanecia, no seu ritmo habitual; fluidez.

quarta-feira, 24 de março de 2010

23.225 - F19

À você, já mulher e ainda menina, todo amor que houver nesta vida.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Sobre: a "redenção" ou "não é possível sair da vida ileso"

É o que se pode resumir do filme "Desejo e Reparação" (Atonement, baseado na obra do escritor Ian McEwan, de Joe Wright, com James McAvoy e Keira Knightley).

Particulamente, a segunda opção é a mais apropriada para explicar não apenas o filme, mas algumas (ou muitas) situações desta nossa vida ordinária.

domingo, 26 de julho de 2009

Caso: caos casual causal

- Você vem sempre aqui?
- Não interessa... isto é lá jeito de se chegar à uma mulher? Medíocre!
- Ah, então você é do tipo intelectual-sensível?
- Petulante...
- Já sei...que tal você resolver meu problema existencial sendo minha Beauvoir?
- Arghh..... sai de perto de mim seu asqueroso!
- Então é do tipo limpinha..
- Idiota! Saia daqui! Você tá me incomodando! Vou chamar meu namorado...
- Baby, desista. Eu te amo e isto é tudo. Você quer beber alguma coisa pra relaxar?
- Acho que não...estou cansada e minhas pernas doem, vou pra casa descansar. Quanto à me amar, esqueça, não acredito nisto, assim, tão rápido.
- Eu também estou cansado, mas vou pra sua casa dormir. Lá é o meu habitat agora.
- Nem pense nisso... tenho namorado e família. Se quiser, te dou uma nova chance, num outro dia a gente sai pra almoçar. Depois disto, nada mais. Eu vivo a minha vida e você me esquece. Que tal?
- Já evoluí...pelo menos tenho uma proposta de um reencontro. Quanto à sua família e seu namorado, esqueça-os: apenas somos nós dois daqui pra frente.

Respiração curta, acelerada e movimentos desajeitados.

- Ah, meu amor, eu fico sem graça já na primeira vez....fico tímida.
- Nem pense em timidez agora...falou ele, com olhar malicioso. Quero o seu carinho, sua atenção, seu sorriso, suas lágrimas, seu coração, sua mente, sua alma. Quero invadir você, mesmo porque você já dominou meu estado de espírito.

Ela tirou o salto alto, deitou-se no sofá e pensou que talvez nada fosse mais precioso que a liberdade de se mostrar tal como veio ao mundo.

domingo, 14 de junho de 2009

Modinha

Não havia pão, não havia leite,

"não havia" era o que se dizia

em além, nas cercanias.

Mas havia também, um porém,

mesmo sem qualquer vintém,

de alegria se vivia.

Nos idos daquela festa junina,

onde nem brisa existia,

tudo se resolveu.

Choveu, amanheceu, nasceu, cresceu.

E pra terminar minha modinha,

pr'eu cuidar das plantinhas,

me amei com Aninha.

Canto n° 07

Homero ajoelhou-se no centro da sala e pensou no amor perdido, na noite enluarada, na brisa que entrava pela janela. E morreu assim, ouvindo a canção “eu quero estar com você, até nós sermos um só, até meu corpo saber o seu de cor, até jamais saciar...até meu rosto enrugar...”

Era um sábado à noite, frio, de opções natimortas; o aparelho de som ainda reproduzia, na voz contralto, rouca e sussurrante “eu quero estar com você...”

O coração permanecia na mesma temperatura corpórea e seu tamanho era sutilmente maior ao tamanho em vida; sangue ainda podia ser observado pelas portas, janelas e paredes. Expelido das veias e artérias próximas ao coração, sangue jorrando forte e veloz.

O sangue escorrendo caudaloso, vivo, sedento, a partir do coração na derradeira pulsação, continuou sua saga, percorrendo toda a cidade, na atmosfera, entrou na rodovia, chegou ao litoral e viu a onda perdida, batendo nas pedras.

Ali apenas o choro, misturando às lágrimas, sal, areia, ondas e pedras. E todos ao fundo do oceano, unindo-se aos ectoplasmas da vida oceânica.

A broca da empresa petroleira parou de funcionar ao bater em um achado geológico: uma multidão de peixes e plantas, toda a fauna e flora marinhas, alimentando-se de uma formação indefinida, multicor, multiforme, de onde saíam lágrimas e sangue em ondas vertiginosas.

domingo, 26 de abril de 2009

Pausa

Darei uma pequena parada no blogue, em função de muitos trabalhos, trabalhos e mais trabalhos.

Deixo alguns sons fundamentais, que têm feito minha cabeça ultimamente:

- Let's stay together, Al Green

- Eu Quero Estar Com Você, Nana Caymmi

- Por Causa de Você, Nana Caymmi

domingo, 19 de abril de 2009

Da série "pare o mundo que eu vou descer"

Pois é, a série continua.

A concessionária de serviços ferroviários no Rio de Janeiro, SuperVia, brindou seus "clientes" da Central do Brasil com chicotes, agressões, espacamentos e cacetadas. Para a porta do trem ser fechada, mesmo com a superlotação evidente, o método de "amansar gado" era posto em prática: chicotadas. O diretor de Marketing da empresa diz ""Quem segura as portas é marginal. Segurar a porta é crime, e mais de 200 já foram para cadeia esse ano". Deste trem, com certeza, eu quero descer. Só falta a CPTM, aqui em SP, adotar a moda....

E continuando no Rio, o governador do Rio de Janeiro decidiu construir muros para impedir a expansão das favelas. Chamou isto de "eco-limites", afirmando proteger o meio ambiente ainda intacto. Sem falar que este mesmo governador, Sérgio Cabral (PMDB-RJ), falou que as favelas são "fábricas de marginais"; além disto prometeu acabar com o "caveirão", carro da PM carioca que invade morros e favelas com o batalhão do BOPE, o que não ocorreu até agora.

É o apartheid social brasileiro; aos do andar de cima, habeas corpus em tempo recorde, defesa incontinenti dos direitos individuais e da liberdade, reportagens e editoriais favoráveis, juros nas alturas, empréstimos milionários do BNDES, que em última instância é dos trabalhadores brasileiros (via FAT), com carência e juros "camaradas" e por aí vai. Aos do andar de baixo: chicotes, cacetetes, caveirão, muro, desemprego, favelas, etc.

Registre-se que o governador do Rio de Janeiro é cotado a ser candidato a vice-presidente da República com Dilma Rousseuff (PT), escolhida por Lula, na cabeça da chapa. Seria, segundo os políticos envolvidos na montagem desta coligação, uma candidatura de "centro-esquerda", sócio-desenvolvimentista, com a união de trabalhadores e empresários nacionais. É a velha tese cepalina (CEPAL) da busca por uma burguesia nacional forte que levaria o país à níveis de desenvolvimento europeus e à modernização capitalista.

Para constatação: EMBRAER, CSN, USIMINAS e VALE decidiram, em função da crise ecônomica, demitir parte dos seus quadros, mesmo com os empréstimos governamentais; há ainda os sonegadores compulsivos, dos quais nem quero falar, porque a lista é vasta. Se for depender deste tipo de empresário para modernizamos a sociedade brasileira, eu quero mudar de país.

Se é isto que a agenda de esquerda tem a oferecer, tô fora.

domingo, 29 de março de 2009

Entretessências

Entreter,
ter você entre,
inter tido.
Entre...
em tudo, me apetece.
Me tece o porvir.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Poema idílico

Ter, tocar,
tatear,
alisar os fios
ondulados,
lado a lado
a sós.

Até encontrar-me em si.
Si, escala maior.
Tom tão assim
é cacofonia.

O descobrimento do riacho por entre a mata; o viajante, como flecha, se dirige ao fio d'água que mata a sede.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Da série "pare o mundo que eu vou descer"

Uma criança em São Paulo/SP é jogada pela janela do apartamento pelos pais; não se sabe ainda o motivo, se é que houve algum.

Uma adolescente é presa em uma delegacia do interior do Pará junto com homens que a estupram diversas vezes; instado sobre o motivo do ocorrido, o delegado diz não saber a idade real da adolescente, esquecendo-se do problema principal: uma menina no meio de homens. Para piorar, o delegado afirma acerca da adolescente: “é débil, desequilibrada”, ou qualquer coisa do gênero, pois não informara a idade real no ato da entrada na prisão.

Uma menina pernambucana de 9 anos é estuprada pelo padrasto. Descobre-se sua gravidez de risco. O hospital, cumprindo a lei, faz o aborto dos gêmeos. O padre, cumprindo o mal cheiroso direito canônico, excomunga os médicos e a mãe da criança pela “violência” com que trataram o feto mal formado, mal sabe ele, também num útero mal formado. Na sequência, o pároco diz ser o aborto mais grave se comparado ao estupro; segundo a lei, Código Penal, este é crime contra a liberdade sexual e aquele crime contra a vida. Detalhe: o padrasto não foi excomungado pela igreja. É o "estupra, mas não aborta" em versão mais cruel.

Diversas crianças da cidade de Catanduva/SP são vítimas de uma suposta rede de pedofilia. Há muitas dúvidas ainda sobre a autoria dos supostos delitos. Entretanto, depois da repercussão, ao tentarem voltar às aulas e à vida normal, tais crianças são vítimas das “brincadeiras” de seus colegas de classe: “mulherzinha, mulherzinha” é um dos exemplos de epítetos dados às vítimas.

Uma “pop star” americana apanha severamente do namorado, também “pop star” e também americano, de forma a ficar com os olhos inchados e o rosto deformado. Posteriormente, ela perdoa o namorado, que promete comprar “muitos presentes” para mostrar seu arrependimento e seu “amor renovado”.

Uma mulher nordestina, não me lembro agora a cidade de seu nascimento, apanha seguidas vezes do marido a ponto de ter recebido tiros nas costas, ficando tetraplégica. Informa a polícia, que diz “não poder fazer nada”. Tempos depois, no Congresso Brasileiro, é aprovada uma lei de proteção às mulheres, que leva seu nome.

A crise financeira avança e se cogita salvar bancos, seguradoras e montadoras de automóveis e as cifras da ajuda governamental já passam dos trilhões (só pra lembrar: doze zeros, 000.000.000.000); mesmo em crise, altos executivos e diretores continuaram recebendo astronômicas gratificações e "bônus de desempenho" ao custo do aumento do desemprego na linha de produção. O aumento dos aposentados e pensionistas brasileiros que recebem o salário mínimo é de 50 reais; em Davos na Suiça, alguns artistas, entre eles Bono Vox e Sharon Stone, prometem ajuda de alguns milhares de dólares para ajuda humanitária para um país africano, verba insuficiente para acabar com a fome, desnutrição e a falta de educação e saúde; alguns governadores brasileiros entraram na Justiça contra o salário mínimo de 950 reais para os professores da rede pública. A desproporcionalidade dos valores citados é brutal.

Os exemplos são muitos; passe os olhos pelas notícias dos últimos meses e analise.

O progresso material não nos fez mais civilizados, nem agora, nem nunca.

Talvez Hannah Arendt explique a maldade e a crueldade humanas.

Que Deus nos salve, porque perdidos já estamos.

Alguém mais inconformado por aí?

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Canto n° 06

À cachoeira de águas límpidas

Um sofá puído, um ventilador de teto, uma lâmpada de luz amarela e fraca e uma noite de brisa leve. A brisa anunciava uma noite com frio e ventos intensos. Silêncio. Ausências.

Apenas o rapaz, inamovível e semitrajado, isto porque suas últimas peças de roupa foram incineradas à bem da saúde pública por insensíveis, e também inamovíveis, funcionários públicos.

Não mais trabalhava, nem mais continuava como pedinte nas ruas e cruzamentos do centro da cidade; saíra desta situação pré-miserabilidade há muito tempo.

Agora, sobrevivia daquilo deixado por alguém. Deixado pra trás, esquecido, já usado e inutilizado. Conseguira reciclar o então inutilizável.

O penúltimo lugar não invadido pela Besta-Fera era sua casa, se é que podia chamar-se assim, construída no meio do deserto. Asseveram os cientistas pela impossibilidade científica de existir por aquelas bandas por muito tempo.

Mas o tempo corria, modorrentamente, e o rapaz permanecia e pensava. Pensava em si e no entorno, calor e frio e dia e noite, contraditoriamente.

Morava no deserto e a geografia era simples: planícies de areias, e areias e areias, sem fim, nem começo.

É o viver extremo, sem meio-termos, sem concessões.

- O morno será vomitado.

Só a consciência e a imaginação.

No deserto não há muros, pensava ele. O muro limita, delimita, marca e divide. Só no deserto não há limites. Entretanto, há sede e frio e solidão. É vida seca.

- E esta casa, bem aqui, com quartos, sala e banheiros, segregando o Eu e os demais...não sei...

- Engraçado, uma das catástrofes climáticas será o surgimento de mais desertos.
Mais desertos?

Pois é, aliada à aridez das pessoas, teremos a aridez física; é a psicanálise se antecipando à geografia.

- A ausência de água poderia ser associada à ausência de amor?

- Não, não. Chega de clichês idiotas, não me salvarão.

- Contudo, quem há de me salvar aqui, senão eu mesmo? Como posso falar em salvação se cá estou? Não há outra margem a ser buscada, se nem rio há.

O último lugar não invadido pela Besta-Fera foi seu pensamento.

Donde ela nasceu.

Estava viva; assim, ele redivivo.

Sobre a casa, no deserto, chovia.

O entorno, seco.

Uma cachoeira dava para o quarto, com a nascente no teto e a foz no delta de Afrodite. Suas águas se encontraram e caminharam para o oceano; no horizonte se avistava uma grama rala e insegura.