sábado, 21 de maio de 2011

O deserto dá vida ou apontamentos de teologia e sociologia

Por estes dias, ouvi uma pregação do pastor e missionário angolano Elias Binja, em um seminário organizado pelo grupo de jovens da IEAD no Jardim da Conquista, na Zona Leste de São Paulo.

Nesta pregação, ele utilizava como base o texto do livro do evangelho de LUCAS 3.2:

“Sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio no deserto a palavra de Deus a João, filho de Zacarias.” (grifo meu, para reforçar o local originador do agir divino).


Inicialmente, o pregador fez considerações acerca da ilegitimidade de Anás e Caifás como sacerdotes supremos do povo judeu, já que a linhagem familial sacerdotal recairia exclusivamente sobre Zacarias e seu filho, João Batista e, portanto, os primeiros teriam usurpado a liderança da responsabilidade litúrgica.

Mas o que mais me chamou a atenção na pregação diz respeito à comparação feita pelo pregador da vida no deserto e da vida na cidade; a contraposição dos estilos de vida: cidade x deserto.

Assim, a cidade representaria a busca pelo lucro, os afazeres cotidianos, a batalha pela sobrevivência, a grandiloqüência das obras humanas, o egoísmo, o self made man, a ausência de solidariedade e a ausência de Deus. Enfim, o homo economicus.

Por sua vez, o deserto representaria a busca pelo autoconhecimento, a solidão, a pequenez humana diante da grandiosidade da obra divina e a necessidade de Deus e do outro.

Esta contraposição de estilos de vida me lembrou do texto de “AS GRANDES CIDADES E A VIDA DO ESPÍRITO” do sociólogo Georg Simmel, cuja temática também é comparativa da vida citadina e da vida no campo.

Neste estudo, o autor analisa o individuo que vive nas grandes cidades em contraposição ao homem do campo, colocando como força motriz das relações citadinas a objetividade monetária do capitalismo.

O fundamento caracterizador da vida na cidade é de natureza psicológica e depois econômica, com a intensificação da vida nervosa: nós, seres humanos possuímos a característica de distinguir as coisas por meio das impressões, e, com o aumento da velocidade e da variância de possibilidades econômicas, pessoais, sociais e profissionais na vida urbana, o homem é, por assim dizer, chamado internamente a opinar sobre as mais variadas impressões colocadas perante ele a todo instante; em outras palavras, é maior a capacidade de processamento da realidade - através de impressões e distinções - do homem urbano, quando comparada ao homem do campo.

Esta chamada interna dá o caráter anímico - que vem da alma - e intelectualista da vida moderna em detrimento à vida rural, cujo “chamado interno” é mais uniforme e lento, além de ter a vida baseada nos sentimentos.

Desta feita, nos casos de mudanças de ambientes, o habitante do campo necessita buscar nos seus sentimentos a raiz para o entendimento da situação. Por sua vez, o habitante da cidade, por estar habituado a constantes alterações, já teria um “órgão protetor” contra o desenraizamento e as reações frente às alterações seriam menos sensitivas no homem urbano que no homem camponês.

E a razão de ser deste gesto protetivo do homem da cidade está na economia e nas trocas monetárias: a objetividade destas atividades não cede espaço a reações fundadas no ânimo ou nos sentimentos: o capitalismo é objetivo (compra, venda, troca, empréstimo, aluguel, alienação).

No campo da psicologia econômica, o autor cita que, no campo, fornecedor e freguês se conhecem mutuamente, na medida em que este encomenda produtos àquele, conquanto na cidade o fornecedor produz para um número indiscriminado de consumidores, com os quais nunca se encontrará. Sobra então, apenas o interesse econômico objetivo de todas as partes.

O homem da cidade é, antes de tudo, um homem contábil, o homo economicus. E, todos os demais sentimentos do indivíduo - traços essenciais individuais e seus impulsos irracionais - precisariam ser amenizados para que a pontualidade, impessoalidade, contabilidade e a exatidão da vida coletiva na cidade se reflitam no interior de cada habitante.

A característica mais clara do comportamento do homem da cidade está no seu comportamento blasé, ou seja, de reserva ou quase aversão a qualquer contato social e de reação contrária a quaisquer estímulos. O blasé é indiferente à distinção das coisas, não porque estas coisas sejam despercebidas, mas porque são nulas: o dinheiro, denominador comum das relações humanas, elimina as pluralidades e diferenças.

Por esta razão, mal conhecemos nossos vizinhos e colegas de estudo ou de trabalho.

As formações sociais mais básicas se iniciam com os “cercadinhos” - círculos pequenos com limitações de contato externo para própria autoconservação - dos quais os indivíduos não podem ultrapassar, mas nos quais podem exercitam limitadamente suas individualidades. Como exemplo, o autor cita os partidos políticos e associações religiosas.

Quanto mais estes grupos crescem, mais a unidade interior se esvai e mais os indivíduos realizam suas potencialidades.

Assim, as indiferenças mútuas e a reserva entre os indivíduos dos círculos maiores, e a cidade cosmopolita é exemplo de formação social complexa, fazem do homem da cidade mais independente do que o homem do campo, e também, mais solitário; ao não interagir com os demais, o indivíduo demonstra que seu modo de vida não é imposto por outros. Reforça sua independência e sua solidão.

Ademais, com a crescente divisão do trabalho e a possibilidade de se criar necessidades lucrativas, o homem busca cada vez mais a especialização, a qual lhe permitiria auferir ganhos maiores; esta especialização se traduz em inovações, instituições, conhecimento, refinamento técnico e delimitação de novas fronteiras científicas, mas também traz consigo egoísmos, esquisitices, extravagâncias, caprichos, preciosismos.

O espírito objetivo da cidade se contrapõe ao espírito subjetivo do campo. O homem da cidade ultrapassa os limites da ciência, do bem-estar individual e do conhecimento, se afastando da espiritualidade, da delicadeza e do idealismo. Segundo o autor, acerca do homem da cidade:

“Ele foi rebaixado (…) à um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que gradualmente lhe subtraiu todos os progressos, espiritualidades e valores e os transladou da forma subjetiva à forma de vida puramente objetiva, talvez de modo menos consciente do que na prática e nos obscuros sentimentos que dela se originam.”


Argumenta o sociólogo que, desta situação, advieram duas correntes filosóficas: uma nietzschiana, na qual o resgate da cultura individual deve prevalecer sobre o que é atribuível a todos, ou seja, as diferenciações e peculiaridades individuais não podem ser diminuídas em face do coletivo ou de uma determinada objetividade coletiva, e, outra socialista, no qual os interesses individuais deveriam coexistir de forma harmoniosa num nível baixo de concorrência entre os indivíduos.

Ambas as posturas, segundo o sociólogo, denotariam a “resistência do sujeito a ser nivelado e consumido em um mecanismo tecno-social.”


Por fim, neste arrazoado de sociologia da religião, sugiro uma terceira corrente, humanista e teológica: que tal o deserto de Deus - a despeito dos diversos nomes que Ele possui nas mais diversas sociedades - para mostrar-nos nossas limitações e indicar-nos uma nova divindade e humanidade interior, cuja alteridade permita dialogar com o outro?

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