À cachoeira de águas límpidas
Um sofá puído, um ventilador de teto, uma lâmpada de luz amarela e fraca e uma noite de brisa leve. A brisa anunciava uma noite com frio e ventos intensos. Silêncio. Ausências.
Apenas o rapaz, inamovível e semitrajado, isto porque suas últimas peças de roupa foram incineradas à bem da saúde pública por insensíveis, e também inamovíveis, funcionários públicos.
Não mais trabalhava, nem mais continuava como pedinte nas ruas e cruzamentos do centro da cidade; saíra desta situação pré-miserabilidade há muito tempo.
Agora, sobrevivia daquilo deixado por alguém. Deixado pra trás, esquecido, já usado e inutilizado. Conseguira reciclar o então inutilizável.
O penúltimo lugar não invadido pela Besta-Fera era sua casa, se é que podia chamar-se assim, construída no meio do deserto. Asseveram os cientistas pela impossibilidade científica de existir por aquelas bandas por muito tempo.
Mas o tempo corria, modorrentamente, e o rapaz permanecia e pensava. Pensava em si e no entorno, calor e frio e dia e noite, contraditoriamente.
Morava no deserto e a geografia era simples: planícies de areias, e areias e areias, sem fim, nem começo.
É o viver extremo, sem meio-termos, sem concessões.
- O morno será vomitado.
Só a consciência e a imaginação.
No deserto não há muros, pensava ele. O muro limita, delimita, marca e divide. Só no deserto não há limites. Entretanto, há sede e frio e solidão. É vida seca.
- E esta casa, bem aqui, com quartos, sala e banheiros, segregando o Eu e os demais...não sei...
- Engraçado, uma das catástrofes climáticas será o surgimento de mais desertos.
Mais desertos?
Pois é, aliada à aridez das pessoas, teremos a aridez física; é a psicanálise se antecipando à geografia.
- A ausência de água poderia ser associada à ausência de amor?
- Não, não. Chega de clichês idiotas, não me salvarão.
- Contudo, quem há de me salvar aqui, senão eu mesmo? Como posso falar em salvação se cá estou? Não há outra margem a ser buscada, se nem rio há.
O último lugar não invadido pela Besta-Fera foi seu pensamento.
Donde ela nasceu.
Estava viva; assim, ele redivivo.
Sobre a casa, no deserto, chovia.
O entorno, seco.
Uma cachoeira dava para o quarto, com a nascente no teto e a foz no delta de Afrodite. Suas águas se encontraram e caminharam para o oceano; no horizonte se avistava uma grama rala e insegura.
Um comentário:
Estranho... me fez lembrar algo, do tipo "Amor à Flor da Pele". Psicanaliticamente falando, transuda libido.
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