sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Canto n° 06

À cachoeira de águas límpidas

Um sofá puído, um ventilador de teto, uma lâmpada de luz amarela e fraca e uma noite de brisa leve. A brisa anunciava uma noite com frio e ventos intensos. Silêncio. Ausências.

Apenas o rapaz, inamovível e semitrajado, isto porque suas últimas peças de roupa foram incineradas à bem da saúde pública por insensíveis, e também inamovíveis, funcionários públicos.

Não mais trabalhava, nem mais continuava como pedinte nas ruas e cruzamentos do centro da cidade; saíra desta situação pré-miserabilidade há muito tempo.

Agora, sobrevivia daquilo deixado por alguém. Deixado pra trás, esquecido, já usado e inutilizado. Conseguira reciclar o então inutilizável.

O penúltimo lugar não invadido pela Besta-Fera era sua casa, se é que podia chamar-se assim, construída no meio do deserto. Asseveram os cientistas pela impossibilidade científica de existir por aquelas bandas por muito tempo.

Mas o tempo corria, modorrentamente, e o rapaz permanecia e pensava. Pensava em si e no entorno, calor e frio e dia e noite, contraditoriamente.

Morava no deserto e a geografia era simples: planícies de areias, e areias e areias, sem fim, nem começo.

É o viver extremo, sem meio-termos, sem concessões.

- O morno será vomitado.

Só a consciência e a imaginação.

No deserto não há muros, pensava ele. O muro limita, delimita, marca e divide. Só no deserto não há limites. Entretanto, há sede e frio e solidão. É vida seca.

- E esta casa, bem aqui, com quartos, sala e banheiros, segregando o Eu e os demais...não sei...

- Engraçado, uma das catástrofes climáticas será o surgimento de mais desertos.
Mais desertos?

Pois é, aliada à aridez das pessoas, teremos a aridez física; é a psicanálise se antecipando à geografia.

- A ausência de água poderia ser associada à ausência de amor?

- Não, não. Chega de clichês idiotas, não me salvarão.

- Contudo, quem há de me salvar aqui, senão eu mesmo? Como posso falar em salvação se cá estou? Não há outra margem a ser buscada, se nem rio há.

O último lugar não invadido pela Besta-Fera foi seu pensamento.

Donde ela nasceu.

Estava viva; assim, ele redivivo.

Sobre a casa, no deserto, chovia.

O entorno, seco.

Uma cachoeira dava para o quarto, com a nascente no teto e a foz no delta de Afrodite. Suas águas se encontraram e caminharam para o oceano; no horizonte se avistava uma grama rala e insegura.

Um comentário:

Fernando A. Medeiros disse...

Estranho... me fez lembrar algo, do tipo "Amor à Flor da Pele". Psicanaliticamente falando, transuda libido.